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Livros & Literatura

Maude Barlow - Água Futuro Azul

Nossa água está em perigo
A discussão sobre a proteção e o futuro da água é mais abrangente do que podemos imaginar! O livro de Maude Barlow discute aspectos fundamentais deste bem tão precioso para o equilíbrio e sobrevivência dos seres vivos de nosso planeta.

"Nós esquecemos que o ciclo da água e o ciclo da vida são um"

Jacques Cousteau

Quando tinha lá meus oito ou dez anos de idade, lembro de ir com meus pais em uma ‘bica’ no bairro do Morumbi - São Paulo - pegar água, que usavamos basicamente para beber. Era uma água de excelente qualidade e de graça! Hoje, no lugar desta bica, existe um condomínio de altíssimo padrão - os moradores não devem ter menos de sete dígitos em suas contas bancárias - e se a bica foi preservada as pessoas como meus pais ou eu não têm mais livre acesso à ela.

Esta lembrança da infância estava escondida em algum lugar de minha mente e há anos não lembrava disto, mas depois de ler o Livro "Água - Futuro Azul", de Maude Barlow, as lembranças retornaram, as sensações do gosto bom da água, o trabalho de descer no pequeno barranco e encher os garrafões e voltar com cuidado para não escorregar e cair nas poças de lama que se formava por ali, coisas que para um garoto são mais que incríveis.

Hoje, tanto eu como meus pais, temos de comprar água mineral para beber, além de pagar a conta para a empresa de abastecimento da cidade. Nós podemos pagar a conta, mas quantos milhares, milhões não tem condições de o fazer, tendo que sujeitar-se a fontes contaminadas e enfrentar toda sorte de doenças? Maude Barlow toca nesta ferida mostrando durante as quase trezentas páginas de seu livro como nossa água foi sequestrada pelo capital particular, pelo descaso das autoridades e pelo mal uso por parte de certos setores da população.

A autora tem todo o gabarito para falar sobre a água, seus problemas e soluções. Ela é presidente nacional do Conselho de Canadenses e do conselho da Food & Water Watch com sede em Washington. Maude também é membro do conselho do Fórum Internacional sobre a Globalização de São Francisco e conselheira do Conselho do Futuro Mundial de Hamburgo. Em 2008 e 2009 foi assessora sênior de assuntos relacionados à água para o 63º presidente da Assembléia Geral das Nações Unidas e liderou a campanha para ter a água reconhecida como um direito humano pela ONU. Foi homenageada com 11 doutorados honorários assim como inúmeros prêmios.

A água é um direito universal

No dia 28 de Julho de 2010 a ONU reconheceu o direito humano à água potável segura e limpa e ao saneamento como algo fundamental à vida.

A descrição de Maude, logo na introdução do livro, sobre como se deu a votação da resolução é emocionante, daqueles momentos que poderiam tranquilamente virar cena de filme.

Apesar de parecer algo óbvio e que todos deveriam importar-se houve resistência por parte de alguns países na votação, já que a resolução implicaria em certas perdas financeiras para alguns grupos. O direito à água é negado a muitos por simplesmente não poderem pagar por isso ou por terem suas fontes poluidas, drenadas ou simplesmente são impedidos de chegar até elas.

ONU
No dia 28 de Julho de 2010 a ONU reconheceu o direito humano à água, um avanço enorme com relação a este recurso fundamental

Com o reconhecimento de um direito humano pela ONU, três obrigações são impostas às nações membro: respeitar, proteger e executar.

Porém, como bem lembra Maude:

"Reconhecer um direito é simplesmente o primeiro passo para torná-lo uma realidade para os milhões que estão vivendo à sombra da maior crise do nosso tempo."

Pág. 13

Mas apesar do desfecho feliz, assim como nos filmes de Hollywood, este final está longe de acabar, muita luta ainda será necessária pois a força do dinheiro e o descaso tanto de autoridades quando de algumas pessoas ameaça gravemente nosso futuro.

Os quatro princípios para salvar a água

Nossa água enfrenta inúmeras ameaças como consumo exagerado e poluição, tanto por parte da indústria como da agricultura, explosão populacional, lançamento de esgoto das cidades, extração excessiva dos rios e aquíferos, mudanças climáticas, mineração e etc.

Como é claro na lei de mercado, quanto maior for a demanda e menor a oferta qualquer item torna-se-há extremamente valioso e é isso que começa a ocorrer com a água. Grandes corporações começam a tomar o controle das fontes para assim poderem comercializá-la a quem tem dinheiro para pagar.

Enquanto isso as fontes de acesso livre e rios são deixados a míngua, o que faz com que acabem sendo destruídos ou poluídos. Esta lógica faz com que cada vez mais pessoas sejam obrigadas a pagar às empresas pela água.

Em seu livro Maude propõe quatro princípios para salvar a água, princípios estes que ela detalha em cada capítulo:

  1. A água é um direito humano - conta a luta para que o direito humano à água fosse reconhecido e como poderosos interesses ainda impedem esse progresso;

  2. A água é um patrimônio comum - argumenta que a água não pode se tornar uma mercadoria a ser comprada e vendida no mercado aberto;

  3. A água tem direitos também - expõe os argumentos para a proteção das fontes de água e a necessidade de tornar nossas leis humanas compatíveis com as da natureza;

  4. A água pode nos ensinar a viver juntos - faz um apelo para que nos unamos contra a ameaça do fim da água.

As corporações e o sequestro de nossa água

Maude é muito clara em sua posição a respeito da relação entre água e a iniciativa privada. Para ela a água é um bem público e deve ser gerido pelo estado, não por particulares.

Segundo a autora, a privatização das empresas de água não tem trazido benefícios ou melhores serviços e, muitas vezes, as empresas acabam recorrendo ao próprio estado para socorrê-las nos momentos de crise.

A autora dá o exemplo do Chile. Apesar da privatização dos sistemas de tratamento e distribuição, dos altos preços pagos pela população e dos os subsídios dados pelo governo em dez anos não houve melhorias significativas no sistema. A quantidade de lares atendidos pelos sistemas de água e esgoto manteve-se quase a mesma. Apesar disso o lucro das empresas é muito grande e o dinheiro viaja para fora do país, já que as companhias que controlam a água são estrangeiras.

"O comércio da água é uma tendência perigosa no tratamento da água como uma mercadoria [...] O comércio de água permite que os governos abdiquem de seu papel de alocar as reservas de água [...] permitindo que as deciões de alocação [...] sejam baseadas na capacidade de pagar"

Pág. 84

O modelo corporativo que se utiliza das fontes de água para gerar seus lucros é um sistema fadado ao caos pois, assim como um vírus, eles acabam ou poluem o recurso e depois vão embora, deixando o problema para as comunidades locais que vão permanecer.

Segundo a autora, a água não pode ser um bem negociável, serviço ou investimento em qualquer tratado entre governos e corporações, pois não há substituto para a água, sem o qual não sobreviveremos. Podemos encaixar a agricultura industrial neste contexto também:

"A agricultura é de longe a maior consumidora de água no mundo - 70 a 90% - tendo em vista que a água usada para cultivar a colheita deixa a bacia hidrográfica para sempre"

Pág. 64

Segundo a Worldwatch, a solução para o problema é a substituição da agricultura industrial por uma produção de alimentos em pequena escala, local e comunitária, como acontece com a agricultura familiar. O grande problema é que, sem acompanhamento técnico adequado, mesmo os pequenos agricultores podem promover a poluição.

Além de todos os problemas financeiros e ambientais envolvidos autora relata vários casos de coação, violência e até assassinatos de pessoas que lutavam e lutam pelo direito à água em vários países, já que estas pessoas vão de encontro aos interesses de certos grupos.

Tais grupos são um grande mal para a água na medida em que, além da violência, podem utilizar seus meios para comprar candidatos e governos e aprovar leis através de lobistas que flexibilizam as normas ambientais com o argumento de expandir o crescimento econômico.

Brasil e o mito da água infinita

Imagem aérea de Altamira, no Pará
Altamira- Pará, 14/05/2013, Mega Represas causam impacto enorme no ambiente e na água. Foto: Regina Santos/ Norte Energia (14/05/2013) Fotos Publicas

Como não poderia deixar de ser, já que nosso país possui uma das maiores reservas de água doce do planeta, Maude fala bastante sobre o Brasil.

Segundo a autora existe, um paradoxo na questão da água, especialmente no Brasil. Ela é relativamente barata, o que leva ao desperdício, mas, ao mesmo tempo, não é um direito fundamental - vide o semi-árido nordestino - já que não existe uma quantidade mínima garantida e gratuita para saciar as necessidades básicas de uma pessoa que não possa pagar por ela. Assim, enquanto muitos desperdiçam outros não tem acesso à água.

Outra prática comum por aqui são os poços clandestinos que retiram água dos aquíferos de maneira desordenada, trazendo graves consequências como o esgotamento da água do subsolo, que deveria ser usada como reserva para períodos de escassez, contaminação e rebaixamento do solo, o que pode fazer edificações desabarem ou abrir crateras que engolem tudo ao seu redor.

Práticas agrícolas inadequadas também são um grave problema no Brasil, pois poluem as águas através dos agrotóxicos, dejetos de animais e fertilizantes, além do esgotamento das reservas subterrâneas ou dos rios pela irrigação feita de maneira incorreta.

A devastação das florestas é outro grande problema no Brasil. Apesar do senso comum de que as florestas são responsáveis apenas pelo ar que respiramos, isto é, apenas uma parte da história. As florestas também têm uma parte essencial no controle do regime de chuvas.

Pesquisadores da Universidade de Leeds descobriram que as correntes de ar que passam sobre grandes florestas tropicais produzem duas ou mais vezes chuva do que as que passam por regiões desmatadas. Estima-se que a quantidade de chuva na bacia amazônica cairá para cerca de 21% nos periodos de seca até 2050.

Outros estudos apontam que a falta de chuvas no sudeste brasileiro, a maior em pelo menos 70 anos, também está ligada ao desmatamento pelo mesmo motivo descrito acima, ou seja, os ventos não estão trazendo a umidade em quantidades suficientes para produzir chuva.

Se já não bastassem os problemas listados acima Maude ainda cita as mega represas, utilizadas para gerar energia elética, como promotoras de grandes malefícios para nossa água e meio ambiente. Vale ressaltar aqui que qualquer tipo de geração de energia gera impacto no ambiente, porém alguns tipos geram mais que outros. Apesar da crença popular dizer que a energia gerada pelas represas ser ‘limpa’ isto está muito longe da verdade.

Dentre os problemas destacados pela autora, e que ela descreve com detalhes, podemos citar a morte dos rios, diminuição da produção de peixes, destruição de terras cultiváveis, extermínio de animais silvestres, interrupção do fluxo de nutrientes carregados pelas águas, contribuição para o aquecimento global por meio do metano emitido pela putrefação das florestas submersas e outros.

Apesar de sua natureza pujante o Brasil precisa assumir suas responsabilidades e cuidar de seus recursos se quiser continuar com seu status de um dos maiores produtores de água do mundo.

Nem tudo está perdido

Mas o livro não trata apenas do que está ruim. Maude apresenta inúmeros exemplos de projetos bem sucedidos pelo mundo para salvar a água. Tais exemplos envolvem tanto governos que perceberam que cuidar da água é mais barato do que entregá-la às corporações quanto projetos que envolvem comunidades locais ou indígenas que lutam por seus direitos fundamentais.

A Europa é um exemplo da retomada da água pelo poder público. A cidade de Paris, por exemplo, poupou cerca de 35 milhões de euros no primeiro ano em que tirou das mãos da iniciativa privada seu sistema de abastecimento e as contas de água foram reduzidas em cerca de 8% para a população.

Na Índia, país com enormes diferenças sociais, existe uma resistência ferrenha contra a privatização da água. Jacarta recomprou, em 2013, seu serviço hídrico depois de dezesseis anos de luta por parte de ativistas e comunidades locais.

Em 1990, uma empresa privada tomou o controle do abastecimento de água de Cochabamba, na Bolívia. A empresa triplicou as taxas de abastecimento e cobrava inclusive pela água da chuva que as pessoas coletavam para uso em suas casas. Uma enorme rede de resistência popular se formou, enfrentando inclusive o exército e obrigando a companhia de abastecimento a recuar.

A tomada de consciência, a verificação das contas e a resistência aos abusos são marcas fundamentais que fizeram governos e comunidades retomarem o controle de suas fontes de água.

Conclusão

Mesmo para aqueles que tem uma idéia da situação da água no mundo o livro "Água - Futuro Azul" revela fatos muito além do que poderíamos imaginar, trazendo ao leitor uma mescla de indignação e esperança.

O livro é revelador em desmascarar países do dito primeiro mundo que estão eliminando ou ignorando leis ambientais, contribuindo desta forma para o agravamento da questão da água, além de mostrar também a situação grave que a desigualdade e o lucro fácil na comercialização dos recursos da água promovem em países subdesenvolvidos ou em desenvolvimento.

"Água - Futuro Azul" é recheado de referências e é fonte de consulta mais que importante não só para interessados, mas também para estudiosos do assunto. Com certeza o leitor não ficará apático com a força narrativa de Maude Barlow.



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