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Anular o voto é anti-democrático? Mitos e verdades.

Voto nulo é um direito?
Coisas que você precisa saber sobre o voto nulo e branco e suas implicações e significados nas eleições.

Entre o intervalo do primeiro para o segundo turno das eleições de 2014 uma discussão iniciou-se em uma rede social, a partir de um post de uma amiga que declarava seu voto nulo.

Uma horda de patrulheiros dos costumes resolveram não só criticar o voto nulo como também colocaram em dúvida o que chamaram de 'patriotismo' desta amiga. Esbravejavam frases de efeito e clichês que variavam entre hinos como 'pátria amada salve salve' até frases prontas como 'o voto nulo/branco é uma imoralidade', 'uma ataque a democracia'.

Infelizmente meus parcos esforços para contrapor tais opiniões, tão enfáticas, não foram páreo para a intransigente crença da verdade pessoal absoluta dos bastiões da moral e dos bons costumes.

Como percebi ser inútil uma discussão com pessoas que como argumento simplesmente bradavam 'NÃO PODE, NÃO PODE, NÃO PODE', e já que a mesma tornar-se-ia uma disputa de quem tem razão e não uma troca de idéias, resolvi deixar como estava e escrever um artigo mais detalhado sobre o assunto, já que eu mesmo tinha dúvidas sobre o assunto e me incomodava demais aceitar o senso comum.

Apesar de no Brasil o voto ser obrigatório, nas eleições de 2014 quase 30% dos eleitores (mais de 37 milhões de pessoas) não votaram em candidato algum, seja anulando, votando em branco ou simplesmente não comparecendo à votação. Será que todas estas pessoas podem ser consideradas imorais, anti-democráticas ou anti-patrióticas?

O que são o voto em branco e o voto nulo?

Para começar precisamos entender exatamente o que é o voto em branco e o voto nulo, além de sua origem, assim como ambos influenciam as eleições.

Segundo Polianna Pereira dos Santos, Assessora da Procuradoria Regional Eleitoral em Minas Gerais (PRE/MG) e professora de Direito Eleitoral:

"Votos nulos são como se não existissem: não são válidos para fim algum. Nem mesmo para determinar o quociente eleitoral da circunscrição[...] Do mesmo modo, o voto branco."

Polianna ainda esclarece a origem dos votos em branco e sua diferenciação dos nulos.

"Antigamente, quando o voto era marcado em cédulas e posteriormente contabilizado pela junta eleitoral, a informação sobre a possibilidade de o voto em branco ser remetido a outro candidato poderia fazer algum sentido. Isso porque, ao realizar a contabilização, eventualmente e em virtude de fraude, cédulas em branco poderiam ser preenchidas com o nome de outro candidato. Mas isso em virtude de fraude, não em decorrência do regular processo de apuração"

Assim, por coerência com o antigo sistema de votos em cédulas, manteve-se separado na urna os votos brancos e nulos, apesar de em essência serem exatamente a mesma coisa, ou seja, ambos não são considerados na contagem geral.

Uma lenda muito conhecida e difundida de que as eleições seriam supostamente canceladas caso a quantidade de votos brancos ou nulos ultrapassassem os 50% do total de votos cai por terra neste momento. Segundo a própria definição de voto branco e nulo, descrita acima, isso não seria possível, pois os mesmos são descartados da contagem final.

"É imprescindível, no entanto, que esta escolha não esteja fundamentada na premissa errada de que o voto nulo poderá atingir alguma finalidade ? como a alardeada anulação do pleito [...] e, definitivamente, não poderá propiciar a realização de novas eleições."

Acredito que os esclarecimento acima são mais que suficientes para balizarmos nossa conversa. Deles tiramos que os votos brancos e nulos, na verdade, são idênticos em sua finalidade nas eleições, porém com definições diferentes, baseadas nas eleições pré urna eletrônica.

Porém uma análise mais detalhada, como a feita pelo colunista Fernando Rodrigues, nos traz outras perspectivas sobre o voto branco/nulo.

Segundo ele, o voto nulo tem uma importância efetiva muito grande no primeiro turno no sentido de beneficiar o candidato que está na frente das eleições. Isto porque, ao retirar os votos brancos e nulos, os 50% +1 necessários para ser o vencedor passam a necessitar de menos votos. O mesmo não ocorre no segundo turno.

Nesta nova perspectiva podemos ver que o voto branco ou nulo pode sim influenciar uma eleição! Você já tinha parado para pensar sobre isto?

Existem diferentes visões sobre o mesmo ato.

Nas eleições municipais de 1988 no Rio de Janeiro, ou seja, logo após a redemocratização do Brasil, ocorreu um fato curioso que muitos não devem lembrar. Influenciado pela revista humoristica 'Casseta Popular' o Macaco Tião ficou em terceiro lugar no pleito para a prefeitura. Como as cédulas eram de papel podia-se escrever qualquer coisa nelas. Claro que os votos no primata foram considerados nulos.

Foto em preto e branco de um macaco sentado em um tronco dentro de um zoológico
A expressiva votação no Macaco Tião é o que comumente se chama 'voto de protesto'. Fonte: O Globo

Que os votos não válidos (brancos e nulos) não entram para a contagem final ou que eles não implicam um cancelamento das eleições já está muito bem esclarecido (espero). A questão é: qual o conceito por traz dos votos não válidos (ou mesmo da abstenção)? Isto acaba entrando mais no juízo de valores de cada eleitor do que em uma teoria precisa. Cada eleitor acaba por encontrar uma razão por detrás dos votos não válidos e, muitas vezes, tentam impor esta visão aos demais como uma verdade absoluta.

Procurei sintetizar, em linhas gerais, algumas das principais visões que as pessoas tem do significado de votos não válidos para que possamos ter uma visão mais clara do que discutir:

Voto de protesto: este é um dos mais citados. O voto de protesto tem como objetivo mostrar a insatisfação com inúmeras coisas, desde o descontentamento com os candidatos até o descontentamento com o voto obrigatório ou o sistema eleitoral. 'Mandar um recado' é a principal frase destes eleitores. O voto de protesto também já foi associado ao voto em algum candidato 'palhaço' o que não parece ter surtido muito efeito nos últimos tempos.

Consciência limpa: não escolher um candidato para muitos tem a conotação de não compactuar com o que é apresentado como opção. Geralmente nenhum dos candidatos traz para o eleitor uma firmeza de atitudes e opiniões ou os planos de governo não são os que o eleitor deseja. O eleitor também não deseja votar por votar, votar por que é obrigado. Ele sente-se como um comparsa ao ajudar a eleger alguém. Como ele sozinho não define a eleição e seu voto não pode ser pela troca dos candidatos sua melhor escolha é não votar em ninguém.

Atentado à democracia: existem aqueles que pensam que invalidar o voto é um atentado à democracia, algo que por tantos anos tantas pessoas lutaram. Esta atitude seria o mesmo que jogar no lixo o seu voto. Os mais radicais acreditam que o ato é tão imoral que tais eleitores deveria perder o poder de voto ou mesmo pregam que deveria ser proibido o voto branco ou nulo.

Quem se importa?: 'Se mesmo votando nada muda quem se importa?'. Esta linha de pensamento é a mais conformista. O eleitor simplesmente não se importa. Ele vai votar ou porque não quer pagar a multa de R$ 3,50 e ter de ir em algum lugar longe justificar-se ou porque não achou um lugar legal para viajar no final de semana da eleição.

O resultado da eleição não é respeitado: Muitas pessoas seguem a linha de pensamento de que quando um governante eleito é afastado (não julgando o mérito de se o afastamento é justo ou não) seus votos foram jogados no lixo. Nesta perspectiva do que adiantaria, afinal, votar?

Alguns exemplos do que as pessoas pensam a respeito de seus votos inválidos foi levantado pela Agência Pública em uma matéria interessante.

"A atual conjuntura do sistema político não me agrada... tinha até um ou dois candidatos que me identifiquei... mas anulei meu voto por protesto... quero mudanças reais em favor do país e não de classe, raças ou credos..."

"Acho que o voto nulo ou em branco é o verdadeiro voto de protesto. Eu uso para mostrar nas urnas que não acho nenhum dos candidatos adequado para o cargo e espero que surja alguém que realmente tenha ideias novas e que as ponha em prática, não reciclagem de ideias conhecidas, repetidas a cada quatro anos..."

"Desilusão, desprazer, desgosto, desconfiança, falta de credibilidade, levaram o Cidadão a anular o voto. Anulação é demonstração de insatisfação; que não acredita mais no cenário político brasileiro. Em uma nação de 202 milhões; 40 milhões de votos desperdiçados, é uma situação muito séria. Isso prova que o cidadão não aceita mais, os atuais personagens políticos como representantes"

Podemos perceber até aqui que a intenção de não escolher um candidato é muito mais ampla e complexa do que os pensamentos simplistas que ouvimos pelas ruas ou nas redes sociais.

Afinal anular o voto é correto ou não?

Chegamos ao cerne de nosso questionamento. Agora que sabemos o que são votos brancos e nulos, o porquê de estarem lá, sua efetiva influência no primeiro turno das eleições e as principais motivações para sua utilização podemos refletir com mais clareza sobre a questão.

A primeira pista para nossa busca pode ser dada pela própria Prof. Polianna

"Nada obstante, o voto tem como uma das principais características a liberdade. É dizer, o eleitor, a despeito de ser obrigado a comparecer, não é obrigado a escolher tal ou qual candidato, ou mesmo a escolher candidato algum.[...] Diz respeito à liberdade do voto a possibilidade de o eleitor optar por votar nulo ou em branco."

Diferente de países democráticos como Estados Unidos, França, Japão, Reino Unido, Itália, Canadá e outros onde o voto é facultativo, no Brasil o cidadão é obrigado a ir às urnas. Sendo assim, segundo a lei, a obrigação diz respeito ao comparecimento e não ao ato do voto propriamente dito, ou seja, todo cidadão é obrigado a comparecer e a votar mas não é obrigado a, necessariamente, votar em alguém.

A jornalista Eliane Brum em um excelente artigo de 16 de março de 2013, dia seguinte aos grandes protestos que ocorreram em várias partes do Brasil, é enfática em seu ponto de vista:

"E quem pretendia votar branco, anular o voto ou se abster seria uma espécie de traidor [...]. Neste caso, escolhia-se ignorar, acredito que mais por desespero eleitoral do que por convicção, que votar nulo, branco ou se abster também é um ato político."

Neste sentido Eliane nos mostra que não votar é um ato político, um ato político em si e não por outros motivos como a lenda da anulação das eleições.

Apesar das argumentações acima sobre o ato do voto talvez a melhor visão sobre o assunto, em minha opinião, tenha sido dada pelo filósofo e escritor Jean-Paul Sartre:

"A escolha é possível em um sentido, mas o que não é possível é não escolher. Posso sempre escolher, mas devo saber que se eu não escolher, eu escolho ainda"

O que Sartre nos lembra em sua frase é que nós, humanos, estamos condenados à escolha. Não escolher é simplesmente um tipo de escolha, mais um dentre os muitos paradoxos de se viver.

Nesta perspectiva o conceito difundido por alguns de que o voto nulo é imoral, um ataque a democracia e etc. diz respeito essencialmente a um juízo de valores próprio, pessoal e intransferível, não amparado em lei, filosofia ou moral que não sejam puramente pessoais.

Impor seu juízo de valores a terceiros, neste sentido, acaba sendo, a meu ver, o verdadeiro ato imoral e anti-democrático. Nesta mesma linha de raciocínio não desejo imputar àqueles que vêem a imoralidade uma moral ou uma imposição para a mudança de visão. Meu objetivo é mostrar a estes que eles não podem condenar as escolhas de quem os contraria baseado em suas opiniões pessoais como se fossem baseadas em uma 'razão universal'.

Conclusão

Chegamos ao final do artigo com alguns interessantes pontos que podem ter surpreendido muitos leitores (como surpreendeu a mim durante minha pesquisa):

Se for votar em alguém que seja com consciência, se não for votar em alguém não deixe de o fazer porque será taxado de traidor ou anti-democrático. Você não o é, pois também fez uma escolha, democrática e pautada na letra da lei.

Por mais paradoxal que possa parecer não fazer escolhas também é uma escolha porém, como em qualquer escolha, saiba que existem consequências. Bem vindo à democracia, bem vindo à vida!



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