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Sebastião Salgado - Da minha terra à Terra

Sebastião Salgado e alguns de seus trabalhos.
Misto de fotografia, biografia e defesa do meio ambiente o livro 'Da minha terra à Terra' faz-nos conhecer melhor o mais renomado e premiado fotógrafo brasileiro.

Tenho que admitir que há algum tempo atrás tinha certo preconceito de Sebastião Salgado. Como conhecia muito pouco de seu trabalho achava que era mais um caso dos que "fazem a fama e se deitam na cama" mas acredito que posso retratar-me neste artigo sobre seu livro de entrevistas entitulado "Da minha terra à Terra" da Editora Paralela. O livro é baseado em entrevistas à jornalista Isabelle Francq que, segundo a mesma, revela a história pessoal de Sebastião Salgado nunca antes contada.

Para os que não conhecem Sebastião Salgado basta dizer que é o mais famoso e premiado fotógrafo brasileiro. Seus trabalhos rodam o mundo e seus livros encabeçam livrarias por inúmeros países.

Meu preconceito devia-se ao fato de que em todos os trabalhos de sua autoria que conhecia eu só via fotos de pessoas que me pareciam muito sofridas, pessoas a margem da sociedade como a conhecemos. Assim imaginava que sua fama vinha da exploração destas pessoas e que seu trabalho resumia-se a isso. Não conhecia sua história, suas ideias, suas influências. Minha percepção parcial contava uma história muito diferente da real.

Talvez eu sofresse de um mal muito comum dos brasileiros, o mal de falar sempre mal de nosso país e dos brasileiros que fazem sucesso com seu trabalho, tirando-se é claro os jogadores de futebol, coisa que não ocorre em outros países, onde arriscaria dizer que certas personagens são até mesmo super valorizadas. Talvez a questão seja que não saibamos aproveitar o que temos de bom e nem tenhamos o tino marqueteiro que outros povos tem.

Aos poucos, porém, fui descobrindo que Sebastião Salgado é um extraordinário profissional. Ele seguiu um caminho que está longe de ser o mais confortável, o caminho de seu coração, de sua paixão, paixão esta que inclui sua esposa, Lélia, presença quase fantasmagórica em seu trabalho.

Ser fotógrafo é esperar

"Quem não gosta de esperar não pode ser fotógrafo"

(pág. 9)

É com esta frase que o livro começa. Sébastião Salgado explica que, assim como às pessoas, é necessário respeitar o espaço dos animais o que exige humildade e paciência. Esta mesma 'fórmula', segundo ele, deve ser aplicada à fotografia como um todo. Fotografar é como uma 'caça' ao momento certo e para isso é necessário esperar.

A questão do tempo é fundamental em sua ótica. Ele prefere trabalhar assuntos mais profundamente, revisitar temas que já abordou do que aderir ao frenesi de nossos tempos, um processo muito diferente do que é dito como fotojornalismo atualmente. Aliás, contrariando alguns críticos, ele mesmo não se considera um fotógrafo jornalista ou mesmo fotógrafo social. Sua única ligação, segundo ele, é com a imagem.

Neste sentido acredito que Sebartião Salgado encara a fotografia de uma maneira Zen Budista, pautada na paciência, na observação das pequenas coisas, dos pequenos detalhes, na atenção e na presença no aqui e agora. A própria forma como se apresenta nas entrevistas, com calma e uma voz tranquila, deixa transparecer o que ele afirma.

"É preciso ter paciência para esperar o que vai acontecer. Pois algo vai acontecer, necessariamente. Na maioria dos casos, não há como acelerar os fatos. É preciso descobrir o prazer da paciência"

(Pág 10)

De Minas para o mundo

Nascido na região do Vale do Rio Doce, Minas Gerais, em 1944, a infância de Sebastião Salgado passou-se na fazenda do pai, de onde traz apenas maravilhosas lembranças.

Aos 15 foi para Vitória, Espírito Santo, terminar os estudos e começou a ver como a vida realmente é, com as desigualdades e miséria, algo que não via na fazenda em que viveu. Conheceu sua futura esposa, Lélia, aos 20 anos. Aderiram ao movimento de esquerda Ação Popular em uma época de grandes transformações econômicas e sociais no Brasil com a industrialização e o acirramento das desigualdades

.

Formou-se economista e participou ativamente das manifestações pela redemocratização do Brasil, o que o levou juntamente com Lélia a exilar-se na França. Lá ajudaram outros brasileiros também exilados pela ditadura através de redes de apoio. Segundo Sebastião Salgado:

"A França, para nós, era uma certeza: a pátria dos direitos humanos e da democracia. Representava a terceira opção entre o comunismo e os Estados Unidos"

(Pág 23)

O país europeu acabou tornando-se sua casa e de lá nunca mais saiu. Mas sua relação com a esquerda não foi sempre um mar de flores. Uma curiosa viagem ao leste europeu marcou sua desilusão com o comunismo.

"[..] fomos de 2cv até Praga para visitar um amigo do tio de Lélia [...] Em Praga, ele nos disse: 'Esqueçam a União Soviética. Aqui, acabou, a burocracia tomou o poder do povo. [...].' Que baque!"

(Pág 39)

Ficaram presos pela neve e pela burocracia alemã até que num golpe de sorte e por um galão de gasolina escaparam do pior.

A fotografia entrou em sua vida casualmente por meio de Lélia, que na França iniciou o curso de arquitetura e necessitava de equipamento fotográfico para alguns estudos de revelações caseiras. Pequenas reportagens aqui e ali trouxeram o gosto pela fotografia que foi tomando conta de sua vida. Largou um excelente emprego em Londres para dedicar-se exclusivamente à fotografia sendo a África, sua paixão, o tema que o fez Sebastião Salgado como o conhecemos.

A fotografia permitiu-lhe viajar pelo mundo e conhecê-lo sob uma ótica diferente, além do que a emergência de um novo mundo trazia consigo novas questões que precisavam ser desnudas. Trabalhou para a Paris Match, Times, Stern, Newsweek, além de organizações como UNICEF, Médicos Sem Fronteiras, Cruz Vermelha, UNHCR e outras.

Apesar de afirmar que não é um fotógrafo social e não aceitar esta alcunha seu trabalho é sim fortemente pautado no social e sócio ambiental, sendo que sua orientação "esquerdista" tem uma clara influência em seus temas, vide seus trabalhos relacionados ao MST (Movimento dos Sem Terra).

Imagem do livro trabalhadores
Uma das fotos de seu livro Trabalhadores em que correu o mundo para registar as diversas formas com que o homem relaciona-se com o trabalho. Créditos: Amazonas Images

Podemos perceber isso pelos próprios títulos de outros projetos como "Trabalhadores" ou "Êxodos".

"[...] constatamos que o mundo está dividido em duas partes: de um lado a liberdade para aqueles que têm tudo, do outro a privação de tudo para aqueles que não tem nada"

(Pág 42)

Em inúmeras passagens do livro Sebastião Salgado refere-se às fotografias que tira como "nossas" em referência à sua esposa. Lélia é parte constante em sua vida profissional e pessoal e durante todo o livro é citada, denotando sua importância. Têm um projeto de vida que vivem e compartilham. Juntos viveram exilados na França, juntos aprenderam sobre a magia da fotografia e juntos fundaram a Amazonas Images.

A arte da fotografia e suas escolhas

Os motivos pelos quais escolheu a fotografia preto e branco são em parte técnicas e em parte econômicas. A cor, na concepção de Sebastião Salgado, pode transmitir informações que desviam a atenção do que é realmente essencial. Se observarmos com cuidado seus trabalhos perceberemos que o que nos chama a atenção acaba sendo as expressões e os contrastes.

"Com o preto e branco e todas as gamas de cinza, porém, posso me concentrar na densidade das pessoas, suas atitudes seus olhares, sem que estes sejam parasitados pela cor"

(Pág 128)

Além de trabalhar com o preto e branco, uma escolha por muitos tida como clássica, Sebastião Salgado também continuou fiel ao filme fotográfico, mesmo anos depois da fotografia digital estar já bem estabelecida. Apesar da resistência aderiu à fotografia digital em 2008 e um dos principais motivos foi o aumento da segurança nos aeroportos pós 2001 que o obrigava a passar com os negativos inúmeras vezes pelas máquinas de raios X, o que os danificava.

O curioso do processo que Sebastião Salgado aplica à suas fotos digitais é que ele as transforma em negativos, a fim de as conservar. Além disso ele afirma que a conversão das imagens digitais em negativos proporciona uma qualidade ainda maior do que na época das máquinas analógicas.

São detalhes muito interessantes para os leitores hobistas e entusiastas da fotografia como eu. No livro também existem vários pontos interessantes que farão com que profissionais e amadores ganhem um novo olhar sobre o que fazer com uma câmera na mão.

Senta que lá vem história

Talvez uma das histórias mais emblemáticas de sua carreira e que o ajudou enormemente a alçar a fama mundial são as fotos que tirou do atentado ao presidente norte americano Ronald Reagan, em 1981. Apesar da importância do acontecimento Sebastião Salgado quase que completamente despreza-o no livro, encarando-o quase que como um tabu. Para ele, na época, o maior medo era tornar-se o fotógrafo de um trabalho só, o fotógrafo do atentado do presidente.

"Pressenti o perigo: eu fotografara a África por anos, trabalhara a fundo a América Latina, mas corria o risco de tornar-me o fotógrafo do atentado a Reagan. Assim, Lélia e eu decidimos nunca mais deixar que aquelas imagens fossem publicadas"

(Pág 61)

Apesar disso ele mesmo admite que este episódio foi de grande importância para sua carreira.

"Mas preciso confessar: esse 'furo' contribuiu muito para financiar minhas reportagens e meu trabalho pessoal [...]"

(Pág 61)

Outras histórias curiosas passam por lugares os mais inusitados possíveis como sua visita a um matadouro de gado nos Estados Unidos:

"[...] matadouro em Dakota, no sul dos Estados Unidos. Foi assustador: matavam-se mil porcos por hora e duas mil vacas por dia! Os trabalhadores repetiam incansavelmente o mesmo gesto atroz, em ambientes sem janelas. O cheiro era insuportável. No primeiro dia, foi impossível tira uma única foto, eu não parava de vomitar. [...] este foi um dos trabalhos em série mais difíceis com que me deparei"

(Pág 68)
Imagem do livro trabalhadores
Sebastião retrata um matadouro nos Estados Unidos, segundo ele o mais difícil de todos os trabalhos. Amazonas Images

Em Serra Pelada, outra locação de "Trabalhadores", Sebastião Salgado conheceu um garimpeiro cheio de cicatrizes de cortes por faca. Ao conversar com o homem este lhe fala sobre os motivos de trabalhar naquele lugar. Em um ambiente extremamente agressivo e 'cheio de testosterona' o que o homem lhe diz surpreende:

"Você é um homem de sorte, Sebastião, mora em Paris. Meu sonho é encontrar ouro e ir para Paris colocar seios de silicone, pois lá estão os mais bonitos"

(Pág 74)
Imagem do livro Trabalhadores
Serra Pelada na visão de Sebastião Salgado. Amazonas Images

O livro traz muitas outras boas histórias que nos dão uma pequena dimensão do que realmente é o nosso planeta, algo muito diferente do que vemos na TV ou ao nosso redor durante o expediente de trabalho.

Gênesis

Imagem do livro Gênesis
Imagem de seu projeto GênesisAmazonas Images

Gênesis foi um projeto planejado para durar 8 anos. Dedicar-se a registrar paisagens e animais foi uma grande mudança de perspectiva depois de tantos anos fotografando pessoas. Foi um grande aprendizado sobre os animais, tema que lhe era estranho anteriormente.

"Que nunca mais venham me dizer que os animais são seres sem cérebro e sem lógica"

(Pág 14)

A imagem de uma iguana em Galápagos, cuja pata lembra a mão de um soldado medieval, foi uma experiência marcante na jornada do projeto. Ela fez Sebastião Salgado perceber um elo de ligação, algo que o conectou a uma nova dimensão, a de que fazemos parte de um todo.

"Com 'Gênesis', tentei mostrar a dignidade, a beleza da vida em todas as suas facetas e o fato de termos todos a mesma origem."

(Pág 104)

A experiência foi tão marcante que a foto da iguana aparece na contra capa de "Gênesis", como uma espécie de alerta talvez.

Graças ao projeto Sebastião Salgado teve contato com novas experiências e culturas que novamente o fizeram espantar-se com nosso mundo como, é o caso dos índios zo´és.

"Esse povo me encantou por sua doçura. Não conhece a violência, nenhum tipo de briga. Mais surpreendente ainda, ignora a mentira. Não sei quem a inventou, qual civilização, mas os zo'és não mentem"

(Pág 112)

Além de colocá-lo a par do que acontece no Brasil, caso da FUNAI, cuja atuação a maior parte das pessoas desconhece e o mega empreendimento Belo Monte.

"Graças à Funai [...] o Brasil é o único país do mundo em que mais de 12,5% de seu território [...] é composto por reservas indígenas reconhecidas pela lei"

(Pág 109)

"A mega barragem de Belo Monte, que está sendo construída no médio Xingu, é uma ameaça enorme para a floresta, para o rio e para as populações indígenas. Se o projeto for de fato concluído será sem dúvida um dos maiores crimes ambientais de nossa época"

(Pág 110)

Sebastião Salgado descobriu um planeta realmente vivo, desde os minerais até o homem, um planeta que possui surpreendentes 46% de seu território preservados, o que lhe deu uma perspectiva única do mundo, pois conheceu pessoas e lugares que, talvez, se tivéssemos várias vidas não conseguiriamos conhecer. Compartilhamos com ele um pouco disso tudo graças as suas imagens.

"[...] com 'Gênesis' fui me dar conta de que sou muito, muito velho. Senti-me eu mesmo e senti-me em meu grupo, mas transportando a 5 ou 10 mil anos atrás. [...] Nenhum dos homens e mulheres que encontrei [...] é muito diferente de mim"

(Pág 133)

Conclusão

O livro está longe de ser um compêndio das melhores histórias de viagens de Sebastião Salgado, apesar de trazer algumas muito boas. Ele se foca mais em sua carreira, nos 'porquês' e 'comos' de sua trajetória em seu modo de pensar, sua orientação política e até mesmo esbarra um pouco em sua vida pessoal, dando especial enfoque à esposa.

Apesar de sentir falta de mais histórias de viagem o livro "Da minha terra à Terra", da Editora Paralela, é um misto de fotografia, biografia e defesa do meio ambiente, sendo interessante não só para profissionais da fotografia mas para o público em geral, admiradores de Sebastião Salgado e para aqueles que ainda não o são.

Terminada a leitura dá até uma certa vontade de largar tudo e sair por este mundão desconhecido como fez Sebastião Salgado já que, diferente dos intelectuais tradicionais, ele não sequestra as experiências dos outros, ele as vive!



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