Os cérebros de Isaac
Dias atrás revolvendo alguns antigos livros, me deparei com uma saudosa coleção de revistas de contos ficção cientÃfica, a antiga Isaac Asimov Magazine, em sua breve vida de 25 números aqui no Brasil, levou seus inúmeros leitores aos mais fascinantes universos da vasta imaginação de diversos escritores, o nome do escritor dado à essa coletânea nada tem de surpreendente, uma simplória homenagem a um dos mais notáveis talentos do século vinte, avaliado pela sua versatilidade como pela criatividade, em minha opinião.
Isaac Asimov durante sua carreira produziu o impressionante feito de escrever mais de quinhentos livros, entre artigos, ensaios, contos, divulgação e ficção-cientÃfica. É vasta a tentação de versar sobre esse imenso e valioso material, que inclusive influenciou o cinema em adaptações como o "Homem Bicentenário", "Eu, Robô" e a própria saga de "Guerra nas Estrelas". Mas irei me conter em um magnÃfico e ousado ensaio onde retratou sobre o cérebro humano, (sutil conexão com o intuito do site), o texto é encontrado no livro Antologia (1958-1973). Neste artigo Asimov afirma que a diferença entre o funcionamento do cérebro e o do computador pode relacionar-se apenas à quantidade de componentes envolvidos, bem como esta conclusão otimista não deve ser tomada ao pé da letra, é um convite à reflexão sobre um aspecto da questão. Escrevendo em 1962, Asimov adotou o ponto de vista, então em voga, de que computadores e cérebros talvez funcionassem de maneira semelhante. Creio que até hoje muitos pensam assim, mas não acredito que seja um simples devaneio do mestre, explico-me.
O uso da expressão "máquinas de pensar" para caracterizar os computadores (então chamados "cérebros eletrônicos") denota essa confusão. As dificuldades à compreensão do cérebro eram atribuÃdas a problemas quantitativos e metodológicos: era imenso o número de circuitos a serem mapeados e limitações éticas impediam o uso de lesões propositais nessas pesquisas.
O aprofundamento dos estudos não só não eliminou essas dificuldades, mas criou novas, ainda maiores, que mudaram consideravelmente a forma de se encarar a questão. Computadores e cérebros não podem ser comparados, e a diferença entre ambos não é um problema de quantidade de informação ou de circuitos, nem de capacidade. Computadores são máquinas que executam instruções preparadas por programadores, as quais ficam estocadas em uma "memória" bem localizada; além disso, só são capazes de resolver certos tipos de problemas, que possam ser escritos sob a forma das chamadas funções recursivas (ou Turing-computáveis). A forma de funcionamento do cérebro é muito diferente. Nossa memória, por exemplo, não está localizada em um lugar preciso ¹.
As funções cerebrais não são facilmente discrimináveis e localizáveis anatomicamente, e a noção de "programa" simplesmente não tem sentido neste caso. A capacidade de aprendizado do cérebro e sua resistência a panes locais resultam de um funcionamento coletivo e integrado dos neurônios, organizados em redes fortemente interconectadas. Prova disso é que o "desligamento" de certo número de neurônios - perdemos centenas de milhares deles a cada dia - não afeta o desempenho do conjunto, o que mostra que o cérebro é dotado de grande redundância. Disso tudo resulta uma imensa plasticidade, ou seja, capacidade de modificar-se em resposta a interferências provenientes do ambiente, desenvolvendo mecanismos compensatórios inacessÃveis a um computador. No nÃvel atual dos nossos conhecimentos, a complexidade dessa "máquina" cerebral produz a imagem de uma imensa desordem, e os paradigmas da computação não servem para compreendê-la.
Alguns chegam a suspeitar de que jamais se saberá como o cérebro funciona. Afinal, dizem, talvez seja impossÃvel entender isso utilizando a única ferramenta de que dispomos, que é o próprio cérebro, como uma cobra que morde o rabo.
¹Sobre esse assunto há um interessante espectro de teorias, uma relativamente recente e inovadora trata o sistema de armazenamento de informação e controle do cérebro como uma espécie de sistema complexo adaptativo, esse modelo adota uma interessante hipótese que sistemas compostos de muitos agentes independentes e correlacionados agiriam de acordo com premissas estruturais da teoria do caos, um assunto vasto que explorarei em outra ocasião.