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Um jornalista americano nas entranhas da desconhecida revolução chinesa

Livro de relatos de Edgar Snow expõe suas aventuras e impressões dentro do movimento revolucionário chinês

Edgar Snow foi um jornalista norte-americano pioneiro: teve o privilégio de ser o primeiro a encontrar-se com Mao Zedong e outros líderes comunistas chineses em 1936, quando a revolução chinesa ainda era um mistério para o ocidente.

Retrato de Edgar Snow na China Vermelha usando um boné
Edgar Snow na China

O resultado desse encontro histórico e de toda a convivência com os revolucionários chineses foi o livro "A estrela vermelha brilha sobre a China", uma obra que constitui um marco na literatura e no jornalismo do século XX, livro este que proporcionou e ainda proporciona uma visão única do nascimento do movimento revolucionário chinês.

Século da humilhação

Para entender a revolução chinesa é preciso falar um pouco do chamado "século da humilhação" que inicia a partir de meados do século XIX com a Primeira Guerra do Ópio (1839) perpetrada pela Inglaterra, na época a principal potência imperialista.

O período foi marcado pela submissão da China às potências imperialistas que a fatiaram em regiões de influência e também por várias revoltas. É neste contexto que surge o Kuomintang, partido nacionalista fundado por Sun Yat-Sen em 1919 que abrigava várias tendências politicas, inclusive os comunistas.

Após a morte de Sun Yat-Sen o Kuomintang cai nas mãos de Chiang Kai-Shek e em 1926 ocorre a cisão entre os comunistas e o partido. O Kuomintang de Chiang Kai-Shek passa a se apoiar nas forças do imperialismo e nos senhores de terras, promovendo a primeira "campanha de aniquilação (física)" dos comunistas. Tais campanhas foram uma constante no período da guerra civil chinesa.

Esta cisão marca o início do movimento revolucionário comunista Chinês e a criação do exército de libertação popular que assume duas frentes de batalha: uma contra a dominação do Japão sobre a China e a outra contra o Kuomintang apoiado pelas elites e pelo imperialismo europeu.

O "século da humilhação" termina em 1949 com a vitória da revolução chinesa e a fuga de Chiang Kai-Shek para a ilha de Formosa (Taiwan).

Os relatos de Snow sobre a "China Vermelha" estão concentrados principalmente no período entre 1936 e 1937.

Entrando nos domínios dos comunistas

Podemos imaginar que a viagem de Snow para atravessar do território controlado pelo Kuomintang (chamado por ele de territórios brancos) para os controlados pelos revolucionários comunistas (chamados territórios vermelhos) não seria um passeio, e não foi mesmo.

Da espera de alguns meses veio a oportunidade da viagem através do contato de um tal Wang, ou "Pastor Wang" como era mais conhecido.

"Eu tinha sido instruído a simplesmente ir a um hotel em Xi’an, me hospedar lá e assim esperar pela visita de um senhor que se apresentava como Wang"

Por meio de uma intrincada rede de contatos, Snow conseguiu iniciar sua viagem que começou de modo relativamente tranquilo por boas estradas que logo se tornaram rotas utilizadas por contrabandistas, trilhas montanhosas e regiões completamente inóspitas, dormindo em pequenas vilas e fugindo de bandidos.

No final de sua travessia, quando finalmente conseguiu chegar em segurança em Shaanxi, território vermelho, seus únicos companheiros eram um guia (que Snow temia ser ele mesmo um bandido) e uma mula de carga.

"[...] minha experiência me provou, mais uma vez, que tudo é possível na China, contanto que feito de maneira chinesa"

Vivendo com os revolucionários

Snow foi o primeiro ocidental e entrevistar Mao Zedong e ouvir pessoalmente suas histórias sobre a infância como camponês, o rompimento com o pai e a adolescência, a evolução da luta anti-imperialista e anti-japonesa, a organização dos sovietes, as batalhas, o sistema educacional e econômico e o dia a dia de um líder revolucionário.

Edgar Snow com Mao Zedong e Liu Shaoqi em Beijing. Foto preto e branco
Edgar Snow com Mao Zedong e Liu Shaoqi em Beijing

Snow não se restringiu somente a Mao, permaneceu nos territórios "vermelhos" por vários meses coletando tanto entrevistas dos demais líderes da revolução, que deu origem a uma série de biografias detalhadas das figuras fundamentais que moldaram o curso da China moderna, como também das pessoas comuns, camponeses libertos e soldados do exército de libertação popular.

Uma passagem do livro chama especial atenção e mostra bem o espírito da população que vivia no soviete revolucionário. Snow pergunta a uma criança em Shaanxi como ela poderia descrever o que é um capitalista. A criança responde sem titubear:

"...um capitalista é um homem que não trabalha, mas faz com que os outros trabalhem para ele..."

Além das entrevistas Snow teve a oportunidade de conhecer o principal soviete da China à época e sua economia, os programas de educação em massa, a reforma agrária e os fronts de batalha, (que na época estavam relativamente calmos) o que deixa para o leitor um panorama amplo de boa parte do que acontecia dentro destes domínios.

Um dos destaques dos relatos de Snow diz respeito à reforma agrária implementada pelos comunistas. Ele faz uma interessante observação sobre as relações de classes na China dos anos 30:

"A verdadeira guerra de classes na China podia ser vista mais claramente na luta entre as milícias e os partisans do exército vermelho, porque essa luta era muitas vezes um conflito armado direto entre os proprietários e seus antigos arrendatários"

Os impostos que os senhores de terras cobravam dos camponeses eram extremamente altos o que fazia com que a pobreza atingisse índices alarmantes.

Assim que entravam em uma nova vila ou localidade uma das primeiras medidas adotadas pelos revolucionários era expulsar os senhores de terras locais e redistribuir as terras entre os camponeses pobres. A notícia da redistribuição das terras era espalhada para as demais localidades próximas, o que fazia os revolucionários serem bem vistos pela população e consequentemente ganharem apoio.

A reforma agrária na China, segundo os relatos de Snow, foi um dos mais poderosos elementos na propaganda e na adesão das massas à revolução.

Retornando para a China "branca" de Chian kai-chek

"Eu senti que não estava indo para casa, mas deixando-a"

A frase de Snow deixa claro como a experiência de cerca de quatro meses com os vermelhos teve impacto em seu espírito.

Terminados os preparativos para sua viagem de volta, só havia uma rota segura para o retorno e ela precisava ser aproveitada. Assim como a viagem anterior, o retorno não poderia deixar de ter inúmeros percalços, incluindo a perda de todo o material coletado durante sua estadia no soviete (fotos, jornais, anotações…). Não fosse a presença de espírito de Snow em agir para recuperar o material a aventura poderia acabar de uma forma bastante negativa devido aos fatos ocorridos nos dias seguintes.

Seu retorno à "China branca" coincide com o desenrolar de fatos bastante importantes. O sentimento anti-japonês crescia até mesmo dentro das tropas do Kuomintang e Chiang Kai-chek cada vez mais perdia o controle sobre a situação na medida em que se negava a combater os japoneses mas insistia na guerra civil contra os comunistas de Mao Zedong. Neste contexto, sua prisão em dezembro de 1936 foi algo inevitável.

Na última parte do livro Snow faz um detalhado relato da intrincada rede de acontecimentos ocorridos na China e fora dela, contextualizando tudo em relação a evolução da luta contra a invasão japonesa, a inserção da China no contexto da Segunda Guerra Mundial e a continuidade da revolução chinesa, que acabou bem sucedida em 1949.

Conclusão

A obra de Edgar Snow é mais do que apenas um livro de relatos, é também de análises históricas, políticas e sociológicas da China dos anos 1930. É uma janela para a lendária história dos revolucionários que transformaram a China de maneira profunda e duradoura.

A versão brasileira traz inúmeras notas de rodapé para ajudar o leitor tanto na contextualização de alguns fatos históricos, quanto apontar aspectos da língua e curiosidades da cultura chinesa.

"A Estrela Vermelha sobre a China" não é apenas uma obra clássica; é fundamental para a compreensão da China contemporânea.



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